5 de maio de 2020

616, Tudo É Inferno - a pretensão erudita no pop contemporâneo.

Essas primeiras chamas, portanto, surgiram em 16 de junho, isto é, no décimo sexto dia do sexto mês. O que dava 616, o número de Lúcifer encarnado no Apocalipse de São João!
Embora a maioria das pessoas acreditasse que o número da Besta era 666, isso não era verdade. Tratava-se de um erro baseado em uma alteração introduzida no Novo Testamento nos tempos do imperador romano Nero.

616, Tudo é Inferno é um interessante suspense que que só erra em sua construção pretensiosa. É um suspense e mistério com bases religiosas (padres x demônio) de desenvolvimento detalhista, que faz da missão de um jovem jesuíta a linha narrativa principal. Quando o jovem padre Albert Cloister recebe a missão de investigar a misteriosa inscrição encontrada no caixão de um pároco espanhol, quando da ocasião de sua exumação, vê-se diate de um mistério que pode por sua fé em jogo. A frase "tudo é inferno", gravada na tampa interna do caixão à unha, causa uma comoção na comunidade religiosa. E as investigações levam o padre Albert a entender que ele é alvo de uma provocação ou uma articulação.

Quero conhecê-lo. Você sabe que me refiro a você. Espero-o na pousada da vindima.
De algum modo esperava-o. Sempre o esperara. E era isso que lhe dava mais medo. Sentia que agora estava onde "algo" queria que estivesse, e no momento em que deveria estar. Quase podia tocar os fios que o prendiam e movimentavam como uma marionete ao capricho do desconhecido.

A história se divide com a entrada de Audrey, uma psicóloga que perdeu o filho e trata de um senhor deficiente mental chamado Daniel. O caso se mostra bastante estranho quando o velho faz revelações sobre o passado da doutora durante algumas sessões. Aparentemente as revelações são de uma personalidade desconhecida que fala através do velho. E uma vez que ele esteja sob os cuidados de uma ordem de freiras, um exorcismo parece a consequência natural à situação.

O argumento de Audrey se baseava em admitir que Daniel era um telepata com visão remota que se manifestava através da personalidade do Daniel obscuro. Portanto só poderia saber sobre ela e seu passado o que a própria Audrey soubesse ou recordasse.
– Que acha de meus poderes – disse o velho com o rosto encolhido, simulando compaixão – não me permitem saber o que você não sabe, não é? Está enganada Audrey.
– Só Deus pode saber o que você diz que sabe... Só Deus e o Demônio.
– E quem você acha que eu sou?

Mas a obra tem problemas sérios com narrativa arrastada por detalhismos e demora na constituição da trama principal. As primeiras cento vinte páginas não definem claramente a trama pois divide a narrativa entre protagonistas. Pior: o mistério perde muito na intenção dos autores em fundamentar tudo com pesquisas e realismos desnecessários. O perigo dessa manobra é justamente estender e relaxar o que deveria ser construção de tensão dramática. Por sorte, Tudo é Inferno melhora muito na segunda parte com as motivações mais esclarecidas, a aceleração narrativa e o cruzamento dos destinos dos protagonistas.
É mais um trabalho sintomático dos imperativos contemporâneos em fundamentar e impor erudição a cada página e a cada situação apresentada (clara consequência de Dan Brown e Umberto Eco). Colocando como fundamental a necessidade de justificar como verdade cada detalhe que incorpora, o trabalho joga para segundo plano sua constituição literária. Se fosse mais compacto e menos exibicionista de suas pesquisas poderia ter composto uma excelente novela de suspense.

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Leitura Radical
Arrastado e detalhista.
Leitura Passional
O manuscrito de Judas, no final, pode deixar cristãos enfurecidos!
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616 - Tudo É Inferno

616 - Todo Es Infierno, David Zurdo, Angel Gutiérrez, 2007
Editora Planeta, São Paulo, SP - 2007
300 páginas

616

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