O corpo estava completamente seco. A expressão no rosto dele pode ter sido a forma como a pele retraiu em volta da boca enquanto secava, mas, por Deus, a impressão era de que ele morrera gritando. (Evangelho de Sangue)
• Hellraiser foi o grande turning point do escritor britânico Clive Barker. Como a série Books of Blood, a novela serviu de exposição ao emergente talento insano e sua predileção pelo bizarro incondicional. Hellraiser conta a tragédia de Frank, um aventureiro que adquire a misteriosa caixa de Lemarchand, um dispositivo minuciosamente construído que, quando destravado, invoca a presença dos apavorantes Cenobitas, entidades que proporcionam ritos de dor e/ou prazer a seus subjugados (– A caixa é uma maneira de quebrar a superfície do real - explicou - Um tipo de invocação por meio da qual nós, os Cenobitas, somos notificados...).
E o fascínio da decifração da caixa é a possibilidade de levar o usuário a um mundo de prazeres carnais indescritíveis (Seu erro na verdade, tinha sido a ingenuidade de acreditar que a sua definição de prazer era a mesma dos Cenobitas). Frank é tragado aos domínios infernais onde os Cenobitas reinam, mas consegue escapar do tormento dimensional quando um pouco de sangue é derramado sobre seus restos, realimentando-os. Agora ele precisa de mais sangue para sua regeneração completa.
A novela é imprescindível na história do fantástico literário, mas é evidente que Barker ainda ensaiava sua narrativa de fantasia incondicional, contemporânea aos famosos Livros de Sangue. Mais do que no livro, a história teve seu potencial ampliado na versão cinematográfica dirigida pelo próprio autor, lhe rendendo reconhecimento mais amplo e fazendo dele uma referência nas narrativas do horror modernas.
Agora, a coisa é bem diferente em Evangelho de Sangue, escrita vinte e sete anos depois de Hellraiser e funcionando como uma revisitação ao universo dos Cenobitas. Evangelho de Sangue encanta brutalmente logo em seu prólogo sangrento. Dividido em cinco blocos, subdivididos em capítulos curtos, o livro flui naturalmente contando a aventura do detetive Harry D'Amour (recorrente de outras histórias do autor) que investiga a vida paralela de um pai de família (a pedido de seu espírito!) e descobre em sua moradia diversos livros de magia, artefatos macabros e... a caixa de Lemarchant! Harry é um detetive de casos sobrenaturais e logo estará sendo perseguido pelo Cenobita Pinhead (perdão, Sacerdote do Inferno) - (Seja fanfarrão enquanto ainda tem fôlego para isso. Você é Harry D'Amour, detetive particular, flagelo do Inferno).
Evangelho de Sangue é um romance de texto ágil, com o autor bem mais à vontade (do que em Hellraiser) no assumido surreal-nauseante que o consagrou e com um sabor muito próprio em suas descrições sádico-eróticas. Uma dosagem entre terror e fantasia macabra. Mas a virtude do livro é mesmo sua construção incomum, que começa como uma história detetivesca e progride para o delirante plano do Cenobita em reestruturar a ordem no Inferno (Pinhead golpista!?) e encontrar um meio de adentrar a dimensão dos vivos, sem depender da caixa de Lemarchant! (–Ele matou quase todos de sua Ordem. Deveríamos prendê-lo e executá-lo). O livro tem seus pontos fracos em momentos meio arrastados, diálogos óbvios de ironia em nível filme B, mas encanta plenamente em suas descrições de paisagens infernais (onde se passa a metade final) e seus delírios violentos.
... o que há dois minutos era uma massa de carne indefinível, agora estava se organizando. A matéria barrenta que Harry vira antes havia se alterado, havia quase um nariz, quase uma boca e dois buracos como impressões digitais onde deveriam existir olhos. O homem de barro começou a andar na direção deles, vapor subindo das mãos ensopadas de sangue.
Editora Darkside, Rio de Janeiro, RJ, 2015
150 páginas
Leitura Passional
Clássico do fantástico moderno.
Editora Darkside, Rio de Janeiro, RJ, 2016
317 páginas
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