O Iluminado (The Shinning, EUA, 1980)
Com Jack Nicholson, Shelley Duvall, Scatman Crothers, Danny Lloyd, Joe Turkel, Philip Stone, Barry Nelson.
É bom estar de volta. Clássico do gênero que parece não pertencer a gênero nenhum e cumpre sua posição de marco divisor no cinema fantástico de forma bastante particular. É possível que The Shinning não tenha feito muito pelo cinema de horror em termos comerciais, como fizeram Poltergeist ou Nightmare on Elm Street, mas ganhou seu status crítico e de público com o tempo. O divertido é que The Shinning mantém seu interesse pelos enigmas e decifrações a cada revisão.
Baseado em livro de Stephen King (e muito melhorado, na modesta opinião do Felipe Preto), o roteiro do próprio Kubrick com a ajuda da escritora Diane Johnson altera especialmente a conclusão e o que no romance era o corriqueiro retorno à ordem, no filme fica em aberto em possibilidades mais amplas de significado. A história é sobre o escritor Jack Torrance e sua esposa Wendy, que juntos a Danny, seu filho de sete anos, enfrentam uma temporada no Overlook hotel, situado nas montanhas do Colorado. Jack aceitou o trabalho de zelador na temporada de inverno – quando o hotel encerra atividades por questões de economia – para poder se dedicar a seu livro. Mas o hotel tem um histórico macabro de mortes e manifestações. Danny, e seu amigo-entidade Tony, percebem logo o perigo. Com o tempo, Jack começa a perder a sanidade pondo em risco a vida da esposa e filho. Exatamente como o zelador anterior havia feito!
Porém, mais do que o simples alinhamento narrativo, como o livro, o filme prefere investir em detalhes para compor um grande painel inquietante. E no caso de Kubrick nenhum detalhe é dispensável, então desde a estrada do início, que se infiltra no mundo primitivo e desconhecido das montanhas, até a fuga de Wendy e Danny, em ascensão na colina de neve, tudo pode servir a leitura. E assim, The Shinning é uma maratona de detalhes mostrados, detalhes sutis e detalhes que podem ser só demência de espectador geek! Mas as inserções e cortes com significado são por demais intrigantes e sugerem decifração o tempo todo. A começar pelos lentos fades de cena a cena, com realidades que se infiltram umas nas outras em um tempo alternativo à velocidade dos cortes secos, impositivos.
Muito mais visual do que verbal, o filme acumula composições (ou charadas) gráficas que sugerem, mas não concluem. Como a cena do labirinto. A mesma distância aérea das cenas de abertura se repete quando Jack observa o labirinto e Wendy e Danny passeiam por lá. Um simples corte de cena parece conferir a Jack o poder da visão aérea, a visão de alguém que paira... Ou quando Danny pergunta a Tony por que ele não quer ir para o hotel. A resposta vem na famosa imagem do elevador.
Na primeira cena de Jack morando no hotel ele é visto pelo espelho. Espelhos e inversões são uma constante de significados no filme: a começar por Jack, entre o frenético e o catatônico. A mulher na banheira, nova e velha. As pessoas geralmente entrando em cena por portas de saída (exit). O clima de delírio é interrompido na "volta ao mundo real" com o noticiário visto por Halloran. O corte é tão brusco que parece um defeito! Na cena do banheiro vermelho, é flagrante a inversão física entre os personagens, quase como em uma carta de baralho. O diálogo também é bastante revelador. "O senhor sempre foi o zelador", diz o garçom.
Danny entra em pânico e Tony o conforta dizendo "lembre-se do que disse o sr. Halloran, são apenas imagens, como figuras de um livro". Mas o Overlook está repleto de imagens pelos recantos, halls e paredes. Jack trabalha entre duas grandes colunas repletas de fotos e parece sempre rodeado por imagens emolduradas. Na cena em que Wendy o acorda de um pesadelo, os quadros estão desfocados sobre sua cabeça. E o Overlook pode ser uma grande moldura que aprisiona. Uma grande armadilha de cruzamentos temporais.
Algumas sutilezas: o Overlook tem a mesma cor cinzenta da montanha, como uma camuflagem, e está repleto de estamparias indígenas (o hotel foi construído sobre um cemitério indígena, no livro). Wendy é apresentada lendo Apanhador nos Campos de Centeio, aquele em que o protagonista sonha em salvar as criancinhas por todos os meios de que dispõe. As janelas do hotel brilham (shine) e refletem de forma fantasmagórica a luz externa, um recurso bastante usado em filmes do gênero e no período (Burnt Offerings, Trágica Obsessão, p. ex.). Logo na entrevista de emprego, Jack tem uma das diversas fotos atrás de si. As gêmeas aparecem sempre pelas portas de saída (exit). A estampa de um guerreiro indígena em uma embalagem de fermento é vista às costas do sr. Halloran no depósito. A mesma embalagem também está às costas de Jack quando ele fica trancado. O Gold Room é dourado como o uísque. Antes de entrar no Gold Room, Jack aparece refletido no primeiro espelho do corredor, e no segundo, mas não no terceiro. A famosa estampa laranja do tapete onde Danny brinca, sugere um labirinto. Wendy também passa a ter visões, mas só no epílogo (influência do espaço e do convívio?). Além das frases: "Venderia minha alma por uma bebida", "O senhor sempre foi o zelador".
Agora, a maior brincadeira fílmica, a maior artimanha sensorial pode ter sido sugerida na cena do bar, quando Jack esfrega o rosto e abre os olhos... O quê ele vê? Ele vê Lloyd, o barman! Mas antes, ele está olhando para a câmera (olhando para nós!) e o filme nos coloca subjetivamente no ponto-de-vista de um dos fantasmas que habita o Overlook!!! Um vez que acompanhamos o filme em uma obsessiva imersão – provocada especialmente pela insistente trilha atonal – somos levados pela câmera-olho em seus movimentos pairando suavemente, pelos corredores e sombras e portas, por cima dos ombros e pelas costas dos personagens. Mais do que nos fazer torcer pelo destino dos personagens, The Shinning nos identifica forçosamente com as almas que flutuam, observam, pairam e rodopiam pelo ambiente! Forever and ever.....
No elenco, habitualmente dirigido à mão-pesada por Kubrick, destacam-se em contraste, a simpatia de Scatman Crothers e a naturalidade do garoto Danny Lloyd. Shelley Duvall passou o diabo no processo extreme do diretor para compor a instabilidade de Wendy. Joe Turkel contribui com sua figura sinistra para o barman. Philip Stone trabalhara com Kubrick em Laranja Mecânica (o pai de Alex) e em Barry Lyndon. E resta a Jack Nicholson reforçar sua figura de malucão, herdada de Um Estranho no Ninho, e ele faz o que todo mundo espera dele em caretas, humor e semblantes sinistros.
Um pouco de timeline: Com o hotel em processo de fechamento para as férias, o bellboy ao lado da coluna está a serviço ou já é uma das aparições? (9:22'). O aviso a Danny (10:20''). Um manto fantasmagórico sobre o hotel (12:25''). O sr. Halloran explica sobre o shinning (19:10''). Jack no espelho (24:26''). O labirinto do Overlook (26:14''). Algo errado com Jack (31'). As gêmeas fazem contato (36:40''). Jack de novo no espelho (39'). A ruptura da família (47:30''). O barman Lloyd em cena (50:16''). Danny pede socorro a Halloran (56'). A mulher na banheira (57:20''). "É bom estar de volta, Lloyd" (1:07:17''). Tempos cronológicos e personagens se confundem (1:10'). Wendy descobre que Jack pirou de vez (1:19'). Machado na porta (1:38'). Careta ícone de Jack (1:40:38''). Cânticos macabros na trilha sonora (1:46'). Danny foge pelo labirinto (1:47').
• Piração de cinéfilo 2: a sombra do helicóptero que aparecia em uma das cenas de abertura foi corrigida nas cópias atuais.
Black Phillip já sabia 😈😈😈😈😈
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