Eu sou o homem sem memória. Terá sido precisamente por isso que me privaram de passado, para me entregar completamente e sem reservas à minha missão, para lhe consagrar todos os meus pensamentos e faculdades?
Incrível romance do polonês Jan Weiss [1892-1972] que emprega elementos de ficção científica, horror e surrealismo em sua feitura. Editado pela saudosa série portuguesa Livro B, A Casa Dos Mil Andares conta a aventura de um homem desmemoriado que acorda em uma megaestrutura do tamanho, ou ainda maior, do que uma cidade e que funciona como um gigantesco cárcere. Ao encontrar alguns papéis em suas vestes ele acaba por assumir a personalidade de Pierre Brok, um detetive que tem a missão de salvar uma princesa encarcerada por Ohisver Muller, o todo-poderoso da fortaleza chamada de Mullertown. Brok, vítima de um experimento a ele desconhecido, está invisível, não lembra de sua real identidade e está incapaz de ver seu próprio reflexo em algum espelho. Situação que ilustra claramente a neutralização das individualidades.
Nesse mundo não se pode viver sem um nome. Está decidido. Serei provisoriamente, e à falta de outra personalidade mais apropriada, esse tal detetive Pierre Brok... Vou procurar a princesa. Como não tenho um passado, talvez encontre o futuro.
Claramente politizado, o texto faz a revista de uma sociedade controlada, dividida hierarquicamente em andares e na qual as insatisfações se manifestam em revoluções que desequilibram a economia. Mullertown funciona como uma cidade convencional, com seu comércio e transportes, mas da qual é impossível a fuga. Sonhos de mudança são propagados e estimulados para outras estrelas e planetas, mas o transporte esconde o tráfico humano e a escravidão. Um alimento cinzento, distribuído em forma de cubo, serve ao embotamento de desejos. Ou, em casos mais difíceis, são oferecidas outras formas de dissuasão.
Vamos inundá-los de vinho e aguardente. Cem andares delirantes, recheados de cabarets, de bares, de prostituas e ladrões hão de paralisar seu entusiasmo e corroer sua disciplina.
Desfilando uma infinidade de tipos e situações, o livro traz praticamente uma metáfora a cada página na ilustração de uma sociedade desumanizada cujas relações se dão pelas vias de um comércio caótico. Se existe algum meio de transformação ele se dará pelas vias da fanatização mítica! E quando Brok começa a ser reconhecido em Mullertown como um possível semideus, afinal sua invisibilidade gera comentários sobre suas ações, a revolução toma corpo na medida em que ele investiga a verdadeira identidade de Muller.
O mais interessante na obra é a antecipação de ideias que seriam vistas em 1984 de Orwell, como no controle implacável das massas por meios similares ao de um cárcere e especialmente na figura de Muller como uma entidade onipresente que tudo vê e tudo controla no aparato de vigília distribuído por habitações, salas, ruas e corredores. Um grande problema, porém, poder ser o final, simplório e óbvio, que pode ser frustrante por sua singeleza, ou, por outra leitura – e considerando que a narrativa se inicia em um sonho e com a clássica pergunta "quem sou?" – a aventura toda pode remeter a um delírio surrealista. Uma sugestão de que verdades só serão completamente apreendidas pelas vias do subconsciente onírico. Assim, o "sonho" de Brok pode ter a dimensão de uma atordoante revelação...
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